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segunda-feira, 23 de maio de 2022

Análise da obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus - Arte de Thiago Lucas - Por Fábio Correia de Rezende

Análise da obra Quarto de Despejo apresentada à disciplina Teorias da Linguagem no Programa de Pós-Graduação em Letras - UNIFESSPA

Professora: Dra. Áustria Rodrigues Brito 

Aluno em Regime Especial: Fábio Correia de Rezende


"O livro... me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)" - Carolina Maria de Jesus, em "Meu estranho diário". São Paulo: Xamã, 1996, p. 167.



            A obra Quarto de Despejo da autora Carolina Maria de Jesus foi publicada em 19601. Ela escreveu essa obra em forma de diário, ou seja, tentativas de concretizar a sua subjetividade, desejos, angústias, medo e porque não dizer também, a “raiva” que sentia todos os dias pela luta incansável na busca de comida para ao menos saciar “um pouco” da fome, se isso é possível. O cenário em que vivia era a favela do Canindé em São Paulo, juntamente com seus três filhos. Apesar de todas as dificuldades, Carolina Maria, por meio da catação de lixo, tentava a cada dia sobreviver com sua família, comendo o que encontrava nos dejetos jogados e dispostos não somente para ele, e sim, para todos que ali viviam na favela. Em meio a esse cenário, Carolina Maria, com pouco estudo, não detentora do conhecimento acadêmico e da escrita formal, ela foi alfabetizada e letrada por apenas dois anos de sua vida, o suficiente para ler e escrever, cujo resultado de dias, noites em meio a fome e esperança por dias melhores, ela escrevia no seu diário, após alguns anos, publicado como o título O Quarto de Despejo, posteriormente, outras obras foram escritas por ela.

        Aqui, neste texto, oriundo da atividade da disciplina citada na capa, por se tratar de um fórum, peço licença para externalizar as minhas emoções e sensações ao me deparar com as informações sobre a autora Carolina Maria de Jesus e a obra Quarto de Despejos. Parece que eu estou aprendendo, a partir das leituras que fiz em Hall, Canclini, Bhabha sobre estudos culturais, a me colocar no lugar do outro. Eu consegui ver, sentir a dor de Carolina, senti as dores que ela e os filhos passaram. Senti frio na barriga quando li sobre a vida dessa autora. As informações dos textos me trazem oportunidades para eu crescer, amadurecer, evoluir como ser humano, como pessoa cidadã em uma sociedade (des)organizada. Confesso que tive medo e receio de tentar escrever este texto porque as sensações que senti, me causaram uma tristeza profunda, descontentamento, mas não escrever, seria uma omissão da minha participação em contribuir e ajudar a quebrar os círculos viciosos existentes na nossa sociedade, onde mulheres negras, como Carolina, mãe, pouco alfabetizada, solteira, estigmatizada pela carga identitária, sofredora pelos racismos e preconceitos, moradora em favela, apesar desse cenário, detentora de uma consciência sócio-política, escritora, poeta e sobretudo humana.

        Quarto de despejo, acredito que pode nos mostrar possibilidades para a (des)construção da nossa identidade em meio a centralidade da cultura, ressaltada por Hall (1997, 2006) na obra A centralidade da cultura e A identidade cultural na pós-modernidade. Hall enfatiza sobre o entendimento que conseguimos desenvolver sobre o conteúdo dos discursos. Os conteúdos produzidos possuem uma gama de redes de significações, aqui me faz pensar no rizoma, talvez compreender com redes de significações rizomáticas, justifico essa compreensão com base em Fernandez (2008) que analisou a obra e observou a manifestação de uma forte presença rizomática no discurso produzido por Carolina quando a autora tentava, por meio da escrita, “simplista” nos seus registros diários retratar a sua realidade. Mediante, o sujeito toma e poderá se apropriar dos discursos, no qual gerará o auto-reconhecimento. Assim, conseguimos perceber essa apropriação do discurso na obra aqui analisada.

        Além de Hall, podemos tentar analisar a obra de Carolina com base em Bakhtin a partir da expressão da individualidade. Por mais que tentemos analisar a individualidade de Carolina de Jesus, por meio da obra, infere-se que a coletividade está presente, comprovados nos relatos escritos nos seus diários, quando, em algum momento, ajuda e contribui com os vizinhos com um pouco de comida. Tal ação demonstra a solidariedade, fator às vezes forte e predominante em determinados grupos de pessoas. Além disso, de acordo com Sylvestre (2022) Carolina usa a sua principal arma, a escrita, a língua, em sua defesa e na luta pela tentativa de mudança da realidade hostil.

        O uso da escrita e da língua reflete a nossa subjetividade. Assim, é possível compreender a subjetividade de Carolina de Jesus por meio dos seus relatos através da escrita nos seus diários. Para Benveniste (2005), a subjetividade da linguagem se concretiza quando o homem toma a potencialidade da língua para si e a usa como instrumento de defesa dos seus interesses e dos outros, também, intervindo de algum modo em sua realidade, seja local, regional ou global. Assim, essa potencialização da subjetividade no/do discurso vemos na obra de Carolina de Jesus, quando ela toma para si, por meio do diário, e se materializa no eu comunicativo, mediante, com os desejos e forças para lutar e sair da condição de catadora de lixo, da qual fazia parte da realidade dela. De acordo com Constâncio e Paschoal (2018, p.13) "a linguagem deixa de ser um instrumento de comunicação e passa a ser um ato de discurso", manifestado nas obras de Carolina de Jesus.

        Para finalizar, podemos inferir na obra de Carolina as possibilidades de compreendê-la por meio dos viés dos estudos culturais com base nos autores como Hall, Benveniste e Bakhtin. A partir de Hall podemos nos concentrar nos estudos de construção da identidade. Benveniste, podemos perceber e compreender a partir da subjetividade da linguagem e em Bakhtin, como ele mesmo explica “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua". (BAKHTIN, 1997, p.282).


1 Fonte: http://www.elfikurten.com.br/2014/05/carolina-maria-de-jesus.html

Fonte da imagem: https://imagens.ne10.uol.com.br/veiculos/_midias/jpg/2021/04/06/597x330/1_carolinaabre-17316243.jpg 



REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso‖. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BENVENISTE, É. Problemas de linguística Geral I: tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri: revisão do prof. Isaac Nicolau Salum, v. 5, 2005.

CONSTANCIO. F. A.; PASCHOAL. P. C. G. Escrita de Si e Enunciação. CADERNOS DO CNLF (CIFEFIL), v. XXII, p. 469-481, 2018. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xxii_cnlf/completo/escrita_de_si_FELIPE.pdf. Acesso em: maio 2022.

FERNANDEZ, R. A. Percursos de uma poética de resíduos na obra de Carolina Maria de Jesus. Itinerários: Revista de Literatura, 2008.

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & realidade, v. 22, n. 2, 1997.

HALL, S.. A identidade na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, v. 4, 2006.

SYLVESTRE , D. R. P. . RELENDO O QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA

FAVELADA PELA TEORIA BAKHTINIANA. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, v. 7, n. 12, p. 1706–1714, 2022. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/3632. Acesso em: 13 maio. 2022


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