O
BELO E O FEIO: um estudo comparativo entre a personagem Alícia de Cinzas do
Norte, de Milton Hatoum e a Caolha de Julia Lopes de Almeida.
ALDA
SOUSA MATOS
FÁBIO
CORREIA DE REZENDE
A beleza agrada aos olhos, mas é a
doçura das ações que encanta a alma.
Voltaire
Este trabalho tem por objetivo fazer uma
análise sobre os aspectos relacionados aos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade, por exemplo, postura,
cabelo, vestuários, vocabulário, entre outros, ou seja, como a sociedade acolhe
aqueles que não se enquadra nos padrões instituídos e como a literatura reflete
as relações do “homem” com o mundo.
Numa concepção história, não há como esconder que os conceitos
de “Belo e Feio”, são desde cedo, assimilados e instituídos dentro da
convivência social. A concepção sobre o que é belo e feio, sempre foi tratada,
historicamente sobre diversos aspectos, especialmente sob o senso comum, de
forma generalizada e genérica. Na infância, por exemplo, somos estimulados a
entender o que pode ser belo e o que pode ser feio, sendo que na maioria de
alguns contextos, por exemplo, nas histórias infantis, o “Belo” é sempre o bom,
agradável, o que vence o mal e no final tudo termina perfeitamente bem.
Enquanto o “Feio”, os podem ser os seres que representam o mal, o antagonista
das histórias e estórias, são os reclusos a uma vida de solidão, dor e
perversidades. Desde crianças, somos acostumados a identificar bruxas como
fazendo parte do lado do mal e associando-as a sua aparência de feiúra. Podemos
citar a fábula de Branca de Neve, além da beleza pré-estabelecida pelo
personagem é foco de desejo pela madrasta, a qual é a vilã, e se transforma em
bruxa feia e má. Segundo Eco (2007,p.212), as bruxas com sua aparência de
velhas e feias são constantemente
recuperadas nas “histórias fabulísticas”
e de terror. A beleza e a feiúra sempre estiveram entre as discussões
existentes em todos os tempos, de todas as sociedades e isso refletiu em todas
as esferas da sociedade.
Na era contemporânea,
onde as imagens, coloridas, vivas, repletas de efeitos através da cultura
multimídia, e os meios de comunicação são o principal mecanismo de propagação
de como a sociedade pensa e concebe o Belo e o Feio, contribuindo para a
(re)produção de estereótipos. Desse modo, esse trabalho busca analisar a
produção de sentidos sobre o Belo e do Feio tem se apresentado como fonte
riquíssima de pesquisas acadêmicas nas representações sociais. Optamos por
nomear os termos Belo e Feio com as iniciais ora maiúscula e ora minúscula, mas
sempre no mesmo sentido.
Em torno destas classificações, elegemos como corpo de
análise, a personagem Alícia do
romance Cinzas do Norte, do escritor
amazonense Milton Hatoum, sendo ela uma representante da beleza desejada e
estereotipada na sociedade. Cinzas do Norte é
o relato de uma longa história que se passa em Manaus nos anos 1950 e 1960.
Dois meninos, de um lado, Olavo, de apelido Lavo, o narrador e órfão, cresce à
sombra da família Mattoso; de outro, Raimundo Mattoso, ou Mundo, filho de
Alícia, mãe jovem, e mulher do aristocrático Trajano. Para Trajano, a Vila Amazônia,
é o seu palacete.
Alícia é o retrato da cabocla
amazonense, inconfundível na sua beleza e nos seus conflitos, vivendo e
sobrevivendo da riqueza e da miséria, conflito da ancestralidade e da confusão
de raças, culturas e sangues, incompatibilidade necessária e busca de unidade
humana no outro. Ela não sabia e nunca
soube quem era o seu pai, talvez um francês que só deixou um vestígio nas Cinzas do Norte. A mulher pobre que um
dia aportou na beira do rio Negro, acompanhada por sua irmã Algisa e uma índia,
mantenedora de exóticos costumes, casou-se com um descendente de português.
Este homem rico e mesquinho, dono da Vila Amazônia. O senhor Jano.
Como contraponto, queremos
estabelecer relação entre a personagem de Cinzas do Norte, Alícia com a personagem
do conto "A Caolha", de Julia Lopes de Almeida. Temos um narrador
observador. Os personagens principais são A Caolha e o seu filho Antonico. Como
características marcantes do conto, podemos destacar a descrição minuciosa dos
personagens, seja fisicamente, ou psicologicamente. Dona “Caolha” é uma mulher
magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos,
delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas [...]
boca decaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como
pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados”. (ALMEIDA, conto A Caolha)
Tais características nos fazem pensar que se trata de uma
senhora de idade avançada e que sofrera muito em sua vida é uma senhora de
origem humilde que não tem muitas expectativas de vida,
com condições desumanas impostas aos deserdados propiciando uma
compreensão critica das condições sociais, materiais e culturais situadas na
obra.
Entre as duas personagens, podemos observar as diferenças
marcantes na construção da identidade. Segundo Tomás Tadeu da Silva (2008), a
identidade e a diferença são determinadas pelos sistemas discursivos e
simbólicos que lhe dão definição, ou seja, de um lado Alícia, vivendo sob a
pressão do esposo Jano para realizar o sonho do seu filho Mundo, o de se tornar
um artista, e do outro a Caolha, sem esposo, trabalhando dia a dia para
projetar uma vida “melhor” para o seu filho.
A literatura, e
todas as formas artísticas, é uma das práticas, de que o homem se vale para
conhecer e para suportar o peso da realidade empírica e de encontrar respostas
às angustias e aos entraves da própria condição humana e aos entraves dispostos
na história. Assim, no texto literário, cabe a cada um de nós, quer as alegrias
quer as desgraças impostas pelas nossas circunstancias ou pelas personagens.
Pensemos, em primeiro lugar, na realidade da própria condição humana. Como é
sabido, a condição humana, no seu sentido antropológico, pode ser vista como
trágica, porque continuamente e sem saída, ela está a mercê das intempéries e
do imprevisível, inclusive da morte, sobre a qual nenhum de nós tem controle.
Nesse sentido a condição humana é o fatum
(fado, destino) inexorável do trágico. É o acidental, o fortuito que, quando
menos esperamos, nos apanha esmaga sem remorso, sem misericórdia ou sem os
meios do livramento. Para falar disso há narrativas, desde os primórdios da
escrita, que expõem a perplexidade, a revolta e a angustia desta condição para
a qual o homem busca meios de a suportar ou a ultrapassar. Como se não bastassem
a correntes da condição humana, a ela vêm somar, em segundo lugar as
ideologias, dentro desse arcabouço, os padrões de beleza que é definido por uma
cultura que privilegia o olhar masculino, mas isso não se reduz a homens ou
mulheres. É uma questão cultural. (SANTOS, 2001)
O fatum da
Caolha era a feiúra, pois as pessoas que não se adequam ao padrão de beleza
vigente tendem a ser excluídas da sociedade é como se ser feia não preenchesse
o requisito de ser fêmea. E o personagem da literatura em destaque aqui é para
essa reflexão. Por isso todos temos que ser conhecedor das condições humanas,
no seu sentido antropológico bem como no sentido sociológico. Segundo Candido
(2006), a estas formas de se conhecer de se conhecer o ser humano poderíamos
acrescentar o conhecimento teórico-artístico, o psicológico, o filosófico, o
lingüístico discursivo, entre outros. Um texto literário contem, de forma
simbólica, esses conhecimentos. É por isso que tem fôlego para ultrapassar o
tempo, o espaço e o destinatário da produção. Como lhe é próprio uma leitura de
um texto literário faculta o leitor a oportunidade de entrar no universo por
ela figurado, cujo cabedal lhe oportuniza ordenar os pensamentos e sentimentos,
organiza a visão de mundo e de si mesmo diante do outro e do universo.
Por essas peculiaridades, o conto A caolha, figura um
universo narrativo com alcance humanizador, universo que revela a contrapelo, o
quanto a vida humana pode ser pisoteada pelas condições matérias e
socioculturais que historicamente constituem a sociedade brasileira. Entendo
aqui por humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que
julgamos essenciais, como exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de
penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade
do mundo e dos seres, o cultivo do amor. A literatura desenvolve em nós a quota
de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 1989,p.117).
Para concluir, percebemos o quanto estereotipadas estão
as personagens descritas e analisadas, na obra de Hatoum e no conto de Almeida.
Percebemos, através delas a concepção enraizada e estigmatizada na sociedade
sobre os conceitos de “Belo e Feio”. Os padrões de beleza impostos pelas normas
sociais, a noção do Belo como o centro e o Feio como margem, conforme Hugo
Achugar em Planetas sem Boca (2006), “somos sujeitos, ocupando algum espaço. É
preciso dar voz e espaço para externar seu ponto de vista”. E apesar das
diferenças entre as duas personagens, ambas ocupavam seus espaços e pela falta
da oportunidade da Caolha, não pode expressar sua voz, e nem Alícia, mesmo
relutando contra Jano, sempre era silenciada.
REFERÊNCIAS
ACHUGAR,
Hugo. Planetas sem boca: escritos
efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Tradução: Lyslei Nascimento.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
CANDIDO,
A. Literatura e Sociedade. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CANDIDO,
A. Direitos humanos e literatura. In: Fester. A.C.Ribeiro(Org.). São Paulo: Brasiliense,
1989.
ECO,
Umberto. História da Beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2004.
_______,
Umberto.História da Feiúra. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2007.
HATOUM,
Milton. Cinzas do Norte. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
MORICONI,
Ítalo (Org.). Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
SANTOS, L.A.B;
OLIVEIRA, S. P de. Sujeito, tempo e
espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
SILVA, Tomás Tadeu
da. (org.) Identidade e diferença: a
perspectivas dos estudos culturais. 8 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Rocco
2008.